Manual de sobrevivência

A vida é como ela é, Artur. Está aí para ser vivida sem floreios e falsas expectativas, como um espetáculo de longa duração em que você assiste e participa sem saber se vai gostar ou não do próximo ato, mas sempre tem a opção de sair antes a ficar até o final.

As cenas acontecem de improviso, o que mareia muita gente. Há comédia, drama e tramas em que você é envolvido querendo ou não. Pense rápido, e terá alguma chance. Muitas cenas se repetem, a deixa para você observar e fazer algumas anotações mentais para um manual de sobrevivência social.

Eu tenho o meu, um compêndio de percepções sobre as pessoas, as situações e as reações dos outros que compartilho aqui para você ter uma ideia de por onde começar a escrever o seu próprio manual.

1 – Respire. No sentido mais amplo do gesto. Feche os olhos e escute o ar entrar pelas narinas e percorrer o caminho natural rumo aos pulmões. Sinta-os inflando e murchando de modo a se lembrar de que você se renova a cada respiração bem dada.


2 – Escute. Escutou?! Mantenha os ouvidos bem abertos e a boca selada. Resista à tentação quase visceral de interromper, um mal contagiante da nossa sociedade. Todo mundo fala, mas poucos ouvem de verdade. Disso surge o ruído que entorpece a todos, e que você ajuda a abafar se se mantiver calado.


3 – Repare. Não leve gato por lebre. Seja um colecionador obstinado das coisas pequenas. Pode ser um agradecimento por uma gentileza recebida, um carinho roubado ou uma mão estendida a quem precisa. Coisa miúda mesmo, mas de muito valor. E invista nos detalhes a fundo perdido, por prática apenas.

4 – Respeite. Sem essa vocação você será incapaz de respirar, de escutar, de reparar e do que mais vier nesse manual de sobrevivência. O respeito é um exercício mental de todos os dias para você não atrofiar. Mas aguente o tranco; sem essa de se esgueirar entre frases prontas. Desarme-se, desapegue e se sujeite ao novo. Caso não receba o mesmo em troca, caia fora.

5 – Seja. Paremos de fingir! As pessoas percebem, não se engane quanto a isso. Quem se diz muito feliz, mente. Quem se diz muito, mente. Assuma-se você mesmo sem titubeios ou falsos movimentos. O mundo carece de pessoas autênticas. E doa a quem doer. Melhor isso a posar de Artur de faz-de-conta. Seja verdadeiro para tudo fluir melhor.


6 – Contemple. A moléstia da humanidade é parar de contemplar. Se quando somos crianças brincamos mais com o embrulho do que com o presente, por que mudar na vida adulta? Quando foi que o pôr do Sol passou a valer menos do que o congestionamento? O Ministério da Sanidade Mental adverte: a contemplação é um poderoso elixir contra muitos males da cabeça, da caspa à ansiedade.


7 – Reflita. Antes de apontar culpados, praguejar e se vitimizar, pense na situação. Comece por olhar para bem dentro de você. Reflita. Pode acontecer de tudo ser mais simples do que parece ou menos desgastante. Um dos mergulhos mais arriscados é nas profundezas de nós mesmos. Teste seus limites para aprender o momento certo de voltar à superfície.

8 – Compreenda. Ou tente pelo menos. Tenha curiosidade pelas coisas, pessoas e relações. Procure entendê-las sinceramente para saber como corresponder e cultivar. A compreensão dá tapas na cara de vez em quando, muito doloridos até, mas também aponta paisagens incríveis que fazem suas caminhadas valerem a pena.


9. Descanse. Peça licença, retire-se do recinto quanto der a sua hora e tenha uma boa noite de cama. O sono faz você sonhar e planar sobre mundos desconhecidos de si mesmo. Ninguém sobrevive sem se resguardar do choque de alta ansiedade da rotina. Descansar é uma ordem.


10 – Lembre. A memória é rica em autoconhecimento. Dela você extrai seu melhor concentrado, como um suco tirado da fruta coberta de orvalho. Reserve carinho às lembranças que conseguir guardar, protegendo-as como faria a bichinhos delicados de jardim.

Lembrança

Fui Essa que nas ruas esmolou
E fui a que habitou Paços Reais;
No mármore de curvas ogivais
Fui Essa que as mãos pálidas poisou…

Tanto poeta em versos me cantou!
Fiei o linho à porta dos casais…
Fui descobrir a Índia e nunca mais
Voltei! Fui essa nau que não voltou…

Tenho o perfil moreno, lusitano,
E os olhos verdes, cor do verde Oceano,
Sereia que nasceu de navegantes…

Tudo em cinzentas brumas se dilui…
Ah, quem me dera ser Essas que eu fui,
As que me lembro de ter sido… dantes!…

Florbela Espanca

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