Ídolo caído

Vou te desapontar feio um dia, Artur. De revirar o estômago. A sua ficha vai cair, e o pai que admira sem reservas será página virada, leite derramado.

Escutarei talvez o desabafo do “— Eu te odeio!”, frase de efeito de muito feito e que todo pai deve de se preparar para engolir, sabendo da azia que vem depois. E não há efervescente que amenize o retrogosto amargo a circular na boca, prevejo. A experiência de perdermos juntos a inocência da nossa relação será ruim para mim, indigesta a você também.

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Pais são mais frágeis do que os filhos, embora não queiram – ou saibam –admitir, porque, ao contrário dos pequenos, estão cheios de vícios, angústias e perguntas sem respostas. Não espere nada diferente em mim, Artur. Sou membro deste clube, levo minha carteirinha vitalícia no bolso.

Nietzsche escreveu sobre ídolos sem medir palavras e conter o desprezo por eles, principalmente pelos velhos ídolos, “que aprendam o que significa ter pés de barro“. Essa é uma caracterização que veste como luva a todo pai.

Somos exemplo, mas não o damos embalado bonitinho em barra, apenas em pedaços soltos que derretem na mão. Por fora bela viola, por dentro pão bolorento, costuma dizer seu tio-avô Flávio.

Mais de uma vez te dei explicações evasivas a perguntas difíceis que me fez. Você ainda não morde a isca de perceber que desconheço muito do sentido e da substância das coisas. Que fique bem claro que eu, seu pai, tentarei ao máximo esclarecer o que venha a me pedir, mas só isso. O oráculo parou de atender na Antiguidade.

De você, espero que me mantenha ao nível do chão, afastado dos ídolos que decida ter. Que esse seja o meu lugar, bem como nosso ambiente de todos os dias. Pedestais nunca me atraíram, muito menos quem fica sobre eles para ver a vida de cima, longe da borda para esconder seus pés sujos de barro do olhar de quem está abaixo.

Meus conselhos serão os menos rebuscados ou sofisticados, reflexo do que sou. Prefiro que, por serem sinceros, tenham utilidade prática, em vez de luzirem como taça delicada na cristaleira. E vai acontecer em algumas situações de eles serem completamente inúteis a você, um dois-mais-dois-igual-a-quatro da nossa matemática elementar.

Most letters from a parent contain a parent’s own lost dreams disguised as good advice. My good advice to you is to pay somebody to teach you to speak some foreign language, to meet with you two or three times a week and talk. Also: get somebody to teach you to play a musical instrument. What makes this advice especially hollow and pious is that I am not dead yet. If it were any good, I could easily take it myself.

Kurt Vonnegut, em Kurt Vonnegut: Letters

A boa notícia é que farei o que estiver ao alcance para ser seu melhor-amigo-pai, que é bem diferente do melhor-amigo-amigo, a quem você confiará segredos mais cabeludos. E se me permite a reciprocidade, terei em você uma autoridade em meus desabafos.

Proponho um trato. Tentemos que o “— Eu te odeio!” não passe de uma possibilidade sempre presente, um fantasma que vai nos assombrar em alguns momentos, mas sem se materializar.

Para isso, precisamos nos organizar. Eu sugiro:

  • Mantenhamos a nossa casa com janelas e portas abertas, arejada e movimentada para espantar as assombrações;
  • Cuidemos a que esteja ordenada, com boas recordações nas prateleiras, de cesta de roupa suja vazia, os tapetes sem sujeiras encobertas e com manutenção sempre em dia.
  • Observemos um ao outro e nossas retaguardas, sem nos expor ao tal do fantasma que não queremos ver.

Repare que são providências simples. Que pai e filho dão conta, de sobra.

E se o “— Eu te odeio!” aparecer, vai causar espanto, mas o segredo é não correr.

E permanecer juntos.

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