Cercadinho de cada um

Eu entendo, Artur. Há dias em que de fato precisamos de espaço, um cercadinho de passe de mágica que mantenha as pessoas a uma distância mais “saudável”, como os imãs de polos iguais que se repelem dos trenzinhos de madeira que o tio Flávio te deu. A água e o azeite são assim também sem se falar há séculos, já contei?

Na semana que passou, foi a minha vez de ficar do lado de fora do seu cercadinho várias vezes. Todo um causo. Começa pela manhã, quando você acorda com o sensor antipapai ligado à máxima potência. Escuto seus primeiros gemidos, vou ao quarto para te dar o bom dia, mas o feitiço se vira contra o feiticeiro. Você esconde o rosto sob o travesseiro, como quem vê o bicho-papão, encolhe-se até parecer um tatu-bola com medo de gente e me ignora olimpicamente.

Veja, não é um modo auspicioso de um pai começar o dia. Para nada. Insistir só piora o quadro, que pode degenerar a um só tempo em gritos lamuriosos e choro. O palco é de uma tragicomédia aclamada pelos críticos.

Eu guardo para mim a vontade de te abraçar, e atuo com cordialidade e respeito, como manda o roteiro e impõe a solenidade da ocasião. Quem disse que há amor no despertar? No máximo, um olhar de reproche a este pai que, muito intrometido, invade o seu espaço à primeira hora.

Você levanta, resvala da cama, passa por mim sem dar brecha e caminha cambaleante, mas decidido, rumo à sala. Só me resta ir atrás, a uma distância segura que te faça perceber que estou por perto, mas sem perturbar seus sentidos aguçados muito menos invadir os limites do cercadinho.

Algumas manhãs são assim, um gato-e-rato em que brinco de rato, não de gato, e de rato que tenta se antecipar aos movimentos do dono da casa, mas sempre se atrapalha. Tudo isso porque você monta bem montado o cercadinho. A vontade é de escancarar, mas respeito. Nós adultos também nos servimos de muitas artimanhas para afastar as pessoas.

Somos todos hábeis construtores de cercadinhos, desde pequenos, como você bem demonstra, Artur. Não há problema nisso, pelo contrário. Ao traçarmos limites, delineamos a individualidade e definimos o nosso núcleo duro nas relações, a parte de nós mais resistente a arranhões e a fraturas por atrito, como o diamante na natureza.

Ser você mesmo, ou o menino que de manhã quer tudo menos o pai por perto, é essencial para fortalecer a ideia de si, um exercício para todos os dias, caia a chuva ou brilhe o sol. Para isso serve o cercadinho, mas não confunda com um muro, que esconde o que está atrás.

O cercadinho protege, sem bloquear a visão de quem está fora. É também uma referência para você saber até onde pode ir sem invadir espaço alheio, onde o ideal é andar como o turista em um país distante, que precisa observar, respeitar e aprender a se relacionar.

Na sua descoberta de terras além-cercadinho, caminhe satisfeito consigo mesmo, ainda que te vejam como um estranho. Com a prática, você conseguirá perceber as pessoas mais tolerantes a te aceitar do jeito que é. Assista ao vídeo abaixo e entenda.

“By denying my true self, I robbed them of all I could give. I became increasingly isolated and alone. That’s what living with acute pain does. It isolates you in secret. I would go on weekend researching why I was suffering.”

Kelly Lepley, pilota de avião

Só tome cuidado para não fazer mau uso do seu cercadinho. Deixe que entrem para conhecer de perto seus domínios e receba de braços abertos. Seja gentil, sinta se há reciprocidade. Montar um cercadinho é diferente de se fechar ao mundo, o que está mais para o egoísmo, um tipo de amor às avessas, voltado para dentro. Quem se apaixona por si mesmo não vive em um cercadinho, mas isolado em um porão onde só há espelhos em vez de janelas.

Muitos são egoístas de plantão, e você será atingido também. Mas vai se escaldar. Fique tranquilo porque a ciência está descobrindo que o egoísmo foge à nossa natureza e cansa, dois motivos de dar esperança.

“So where does selflessness come from? This question, sustaining centuries of philosophical debate, is whether selflessness is an effort or a default. Recent research hints at the neural answer, locating specific areas of the brain which seem to rein in our better nature. This suggests that selflessness is the default option. Your conscience aside, surrendering your seat on the train for someone else might be a little less effort for your brain.”

It takes effort to be selfish, Scientific American

Eu não me importo de ficar de fora do seu cercadinho, que hoje faz mais graça do que me afasta. Isso vai mudar, eu sei. Com os dias passando, o seu cercadinho aumenta de diâmetro, como as ondas em círculos perfeitos de uma pedra jogada na água.

Eu ficarei cada vez mais distante do seu mais íntimo, apesar de continuar vendo o que está dentro do seu cercadinho porque tenho a esperança de que jamais exista um muro entre nós.

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