Gelo que derrete

Adultos só entendem o que é ser criança, na alegria e na tristeza, quando têm filhos – assim como você compreenderá algumas das minhas atitudes se tiver os seus.

Dou um exemplo nosso antes que me esqueça.

O dia de passeio em família transcorria sem notas de rodapé. Mas houve um momento em que a sua infância foi interrompida por um choque de realidade e você reagiu a isso com um olhar de estranhamento, como a gente vê em turistas desorientados numa estação central do metrô ou percebe nos vira-latas da praça quando a cidade se reúne para o coreto de domingo e eles tentam desviar de pernas e injúrias.

Você vibrava com as árvores diferentes, apontava para o céu borrado de nuvens, mas já não sabia como lidar com algumas pessoas à volta porque em algum momento elas haviam decidido que era hora de te dar um gelo por alguma coisa que nenhuma criança na sua idade faria por merecer semelhante reprimenda.

O desconcerto se transformou em ansiedade, que tomou conta do seu corpo cada vez mais agitado. Você andava de um lado a outro na tentativa de puxar assunto com quem encontrava pelo caminho, como um pedinte que brota e vai embora antes de ouvir sim ou não.

Adultos podem ser danosos. Têm tanto medo de si mesmos e dos outros que levam ao pé da letra a ideia autocentrada de que a melhor defesa é o ataque. E não se importam se há crianças no caminho, aceleram seus rolos compressores sem pesar as consequências.

Antes do passeio, você se desentendera com outras crianças, como acontece desde que a infância existe. E desde que a infância existe crianças que se desentendem resolvem suas próprias diferenças.

Mas adultos medrosos preferem tomar partido e liderar o ataque como estratégia de preservação de sua espécie, envolvendo os filhos como cúmplices. Daí o gelo a que você foi submetido, sem necessidade e fundamento.

Essa atitude infantil de quem deveria dar exemplo foi tomada como se só houvesse um lado da história, em que você foi apontado como culpado, quando, em realidade, deveríamos proteger as crianças de julgamentos e juízos de valor porque nós mesmos não nos encaramos antes no espelho.

Que adulto se julga e se dá uma pena que lhe ajude a se reintegrar à sociedade? Que adulto dá às crianças o benefício da dúvida? Deixemos que vocês se desentendam e se conciliem, sem intoxicar esse aprendizado com os nossos medos de gente grande – e embrutecida pelo tempo e pela cisma de atacar para se defender.

O certo, Artur, é que o gelo derrete. E muito rápido sob o sol de um dia de passeio em família em que nem todos são translúcidos e frios como o mais quadrado cubo de gelo.

3 comentários em “Gelo que derrete”

  1. Hi there would you mind letting me know which webhost you’re using?
    I’ve loaded your blog in 3 different internet browsers and
    I must say this blog loads a lot faster then most. Can you recommend a good internet hosting provider at a honest price?
    Thank you, I appreciate it!

    Responder

Deixe um comentário