Aventuras da Terra

Pais fantasistas têm dupla jornada. Por mais que contemos histórias de misturichos, submarinos amarelos, baleias incríveis e de imagens do japão, é da realidade que saem personagens e tramas mais fantásticas. Como a dos perigos que enfrenta o mundo em que vivemos – nosso lar em meio ao vazio do espaço. As aventuras que ele vive são cheias de ameaças infligidas por uma sucessão de erros da minha geração, da de seus avós e da de seus bisavós.

Somos em geral incapazes de cuidar do planeta. Veja o caso de um senhor poderoso e de intelecto claudicante que habita uma casa branca reluzente no que para muitos é o centro do mundo. Este senhor cometeu um ato vil às vésperas do Dia Mundial do Meio Ambiente sobre o qual desejo lhe contar. Mas vamos deixá-lo na sua casinha de momento; já voltaremos a ele.

Prefiro antes lembrar da nossa rua, em que brincamos de bola e você dá pedaladas de bicicleta. Ela estava suja outro dia, o que chamou a sua atenção.

— As pessoas não podem jogar lixo na rua, né papai? Isso é errado.

Sim, Artur, é errado. Mas muitos adoram, de paixão. Difícil entender, eu sei, mas nós seres humanos somos irracionais – tenha-me como exemplo. E pensar que você, aos quatro anos, sabe que é um mau hábito isto que muita gente faz de emporcalhar a vida. Vivemos há décadas entre restos e colecionamos muitas poluições, como as de som, de resíduos, de água e de luz – essa capaz de esconder as estrelas do céu!

Uma triste condição que nos fez indiferentes, coniventes ou conformados. Quem sabe, os três juntos. E a coisa só piora. Mas você, com suas palavras de criança, irritou o meu pessimismo, que foi dar uma voltinha.

A magia aproveitou para chegar mais perto e me animar. Ela foi breve, o suficiente para me convencer a imaginar se, por força da evolução de nossa espécie, a sua geração teria um gene que governa um instinto de autopreservação mais evoluído, sensível também aos apelos planeta, que anda fatigado, descrente e decepcionado com a nossa atitude. Seriam vocês mutantes?!

Veja, não sou de todo pessimista. Gosto de sonhar: vocês, crianças desta época adulta, desenvolvendo-se com uma disposição espontânea para cuidar das coisas da Natureza e crescidos depois com o dom de zelar pelo que é orgânico, tem seiva, respira. Todos ligados pelos mesmos costumes inatos apesar das distâncias, constituindo um povo alegre que dispensa ter um país próprio porque reconhece a Terra como sua nação.

Quando acordo deste admirável mundo novo do meu sonho, murcho. A maioria das pessoas reage prontamente a futilidades do dia a dia, que pode ser uma provocação no cruzamento, mas finge que não vê as coisas sérias, como a poluição dos rios nas suas cidades. O instinto de autopreservação infelizmente ficou seletivo.

“Darwin entendera um ponto crucial. A noção de ‘luta pela sobrevivência’ já era corrente nos círculos científicos há algum tempo (e tinha sido aceita por todos desde tempos imemoriais). As espécies lutavam ferozmente contra outras espécies numa guerra perene pela autopreservação. Lendo Malthus, Darwin subitamente compreendeu que a luta prosseguia também dentro de cada espécie (um ponto que também se tornara óbvio, desde tempos imemoriais, para os pobres).”

Darwin e a evolução em 90 Minutos, por Paul Strathern

Lá atrás no tempo, sobrevivíamos como caçadores-coletores apegados às coisas naturais porque (já) sabíamos que sem elas seria impossível viver. Não fazia falta o líder do grupo ou o cacique da tribo bater o cajado no chão para dar a lição.

A terra, a água e o ar eram respeitados. Eram sagrados. Mesmo iletrados, de pés descalços e lascando pedras, entendíamos que a Natureza era a nossa melhor amiga.

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Mas isso mudou quando demos as costas a ela e abrimos mão da amizade por pura soberba. Hoje, a tratamos com desdém, com o único interesse de que nos dê mais de seus recursos, como o alumínio para a produção de incontáveis latinhas de refrigerante e cerveja, o petróleo transformado em produtos que tocamos e comemos e muitas outras matérias-primas.

Hoje, os alimentos brotam das prateleiras dos supermercados e dos ultra-super-dolby-surround-hipermercados, uma fartura jamais vista na humanidade – o que não quer dizer que todas as pessoas do mundo se alimentem, pelo contrário. Muitas crianças como você, Artur, e até adultos, desconhecem a origem dos alimentos, o contexto de como uma pizza, por exemplo, só sai saborosa do forno se houver água pura e terra saudável para a produção do queijo, do tomate, do trigo e dos outros ingredientes.

E aquele senhor que vive na casa branca, o que ele tem a ver com isso? Resulta que ele, Artur, um reconhecido amante de junk food, amicíssimo da indústria do carvão, contrário ao desenvolvimento de tecnologias sustentáveis e indiferente ao futuro do planeta e às notícias de derretimento das geleiras, por exemplo, esse senhor decidiu que os Estados Unidos, o segundo maior emissor global de CO2, devem sair do Acordo de Paris.

Outro erro azedo da minha geração, da de seus avós e da de seus bisavós. Para muitos de nós, a mudança climática é uma falácia, uma suposta invenção de cientistas perversos associados com o único objetivo de dominar o mundo. Acontece que essa não é uma história de livro, mas a realidade mais simples e dura que possa haver. O nosso planeta está quente, sufocante e extenuado.

Por mais que senhores em casas brancas queiram negar, com decisões infundadas e anacrônicas, é hora de mudar. Muitos da minha geração, da de seus avós e da de seus bisavós até tentam lutar contra seus instintos de consumidores vorazes, dando sua parcela de contribuição, mas o mundo precisa de mais esforços, braços e espírito de autopreservação das pessoas.

E aqui estamos, Artur: deixamos a você, à sua geração e à de seus filhos, netos e bisnetos, o ingrato, porém revitalizante, desafio de proteger a Terra e de cuidá-la como ela merece, na tentativa de um dia reconquistarmos sua amizade. Ela é tão delicada, linda, cheia de vida, como uma criança como você. E tão cheia de possibilidades que estamos apagando, como a borracha faz no traço desenhado a lápis.

Conte comigo até quando eu tiver forças para te acompanhar nesta que, sim, será uma grande aventura de livro para você contar aos seus pequenos, uma história muito mais bonita e lúdica do que a que narrei a você sobre a sucessão de erros da minha geração, da de seus avós e da de seus bisavós.

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