Espelho na caverna

Participar do seu crescimento é como estar o tempo todo diante de um espelho embaçado em que me vejo menino como você, mas sem as mesmas linhas finas e o volume. Só há contornos no reflexo difuso sob a camada de gotículas de memórias aglutinadas pelo vapor.

Toda vez que você diz palavra com sotaque de criança ou faz uma pergunta desconcertante, eu tento imaginar, diante desse espelho meu, como fiz as mesmas coisas.

Fui tão alegre quanto? Tinha a língua presa? Ou pouco perguntava das coisas? Enfim, você me faz pensar em como eu era na sua idade.

O espelho embaçado bem poderia ser um portal que nos levasse à minha infância; você e eu juntos neste encontro de gerações para descobrirmos como eu me comportava.

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Ocorre que um espelho é um espelho apenas. Ele encanta desde que os sumérios começaram a polir o bronze com areia para admirar imagens refletidas rudimentares, mas não liga pontos no espaço-tempo .

O máximo que o espelho embaçado me dá é a inspiração, o impulso de imaginar quem fui um dia. E cogitar se o melhor de mim ficou lá atrás em um tempo inalcançável que só posso reviver com a mesma pouca nitidez que fez os sumérios idealizarem os detalhes que suas peças de bronze jamais conseguiram dar.

“For the first time, mirrors became part of the fabric of everyday life. This was a revelation on the most intimate of levels: before mirrors came along, the average person went through life without ever seeing a truly accurate representation of his or her face, just fragmentary, distorted glances in pools of water or polished metals.”

Steven Johnson, em Como chegamos até aqui: a história das inovações que fizeram a vida moderna possível

Mas o que acontece se eu esquecer por momento o espelho e virar a cabeça para o ponto de origem da imagem refletida, como Platão nos ensinou a fazer na caverna?

Quando faço isso, eu percebo você, Artur – como se estivesse sob o arco de entrada da caverna de Platão. Você é a realidade que projeto no espelho desejando que seja eu refletido. Mas a minha imagem de menino já não tem serventia, se muito como anedota de almoço de domingo.

A nitidez que os povos antigos jamais reproduziram em seus espelhos eu percebo todos os dias nos teus movimentos, nos teus desejos e nas tuas piruetas de criança. Confesso: é uma experiência de vidrar.

Eu adoraria me ver à distância em um parque do passado brincando com outras crianças e descobrindo como usar o balanço depois de cair muitas vezes e me levantar. Eu adoraria.

Mas jamais embarcarei em viagens no tempo. O que me faz valorizar ainda mais a única alternativa ao meu alcance, que é te amar ao máximo como um dia, eu bem pequenino e criança igual a você, devo ter sido amado.

E se as memórias da minha infância estão hoje embaçadas, que seja. Conforta saber que é você ali diante do espelho.

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Espelho na caverna

Participar do seu crescimento é como estar o tempo todo diante de um espelho embaçado em que me vejo menino como você, mas sem as mesmas linhas finas e o volume. Só há contornos no reflexo difuso sob a camada de gotículas de memórias aglutinadas pelo vapor.

Toda vez que você diz palavra com sotaque de criança ou faz uma pergunta desconcertante, eu tento imaginar, diante desse espelho meu, como fiz as mesmas coisas.

Fui tão alegre quanto? Tinha a língua presa? Ou pouco perguntava das coisas? Enfim, você me faz pensar em como eu era na sua idade.

O espelho embaçado bem poderia ser um portal que nos levasse à minha infância; você e eu juntos neste encontro de gerações para descobrirmos como eu me comportava.

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Ocorre que um espelho é um espelho apenas. Ele encanta desde que os sumérios começaram a polir o bronze com areia para admirar imagens refletidas rudimentares, mas não liga pontos no espaço-tempo .

O máximo que o espelho embaçado me dá é a inspiração, o impulso de imaginar quem fui um dia. E cogitar se o melhor de mim ficou lá atrás em um tempo inalcançável que só posso reviver com a mesma pouca nitidez que fez os sumérios idealizarem os detalhes que suas peças de bronze jamais conseguiram dar.

“For the first time, mirrors became part of the fabric of everyday life. This was a revelation on the most intimate of levels: before mirrors came along, the average person went through life without ever seeing a truly accurate representation of his or her face, just fragmentary, distorted glances in pools of water or polished metals.”

Steven Johnson, em Como chegamos até aqui: a história das inovações que fizeram a vida moderna possível

Mas o que acontece se eu esquecer por momento o espelho e virar a cabeça para o ponto de origem da imagem refletida, como Platão nos ensinou a fazer na caverna?

Quando faço isso, eu percebo você, Artur – como se estivesse sob o arco de entrada da caverna de Platão. Você é a realidade que projeto no espelho desejando que seja eu refletido. Mas a minha imagem de menino já não tem serventia, se muito como anedota de almoço de domingo.

A nitidez que os povos antigos jamais reproduziram em seus espelhos eu percebo todos os dias nos teus movimentos, nos teus desejos e nas tuas piruetas de criança. Confesso: é uma experiência de vidrar.

Eu adoraria me ver à distância em um parque do passado brincando com outras crianças e descobrindo como usar o balanço depois de cair muitas vezes e me levantar. Eu adoraria.

Mas jamais embarcarei em viagens no tempo. O que me faz valorizar ainda mais a única alternativa ao meu alcance, que é te amar ao máximo como um dia, eu bem pequenino e criança igual a você, devo ter sido amado.

E se as memórias da minha infância estão hoje embaçadas, que seja. Conforta saber que é você ali diante do espelho.

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