A minha vozinha de pai me diz para não economizar verdade com vocês, Artur e Bento. Então, lá vai: dor inevitável faz parte da vida. Em todas as suas formas: a dor no corpo, na consciência e no coração. Elas atacam de todos os lados e algumas conquistam territórios.
Prometeu foi um titã que sentiu todas as dores. A pedido de Zeus, ele esculpiu o homem à semelhança dos deuses. Uma tarefa delicada porque toda criatura se liberta em algum momento do seu criador. E assim foi. O homem aprendeu de Prometeu a sobreviver e a conquistar a terra, mas também o amaldiçoou para a resto da vida.
Zeus não queria que os homens dominassem o fogo, mas Prometeu foi longe demais. Ele acendeu uma tocha e a entregou à humanidade. Foi quando se queimou. Irritado com a desobediência, Zeus decidiu punir o titã com uma existência de sofrimento sem cessar.
Acorrentado a um penhasco, ele passou o resto de seus dias sendo atacado diariamente por uma águia faminta que devorava seu fígado. Tem mais: o órgão se regenerava até as bicadas recomeçarem no dia seguinte, perpetuando o ciclo de dor de Prometeu.
Dor inevitável no corpo
Minha dedicação de pai não me deixa mentir: a primeira dor que todos sentimos é a dor no corpo, exatamente quando o médico, com suas luvas cirúrgicas sem tato, arranca nossos corpos do ventre. O oxigênio queima os pulmões ainda alagados e reagimos com choro por puro instinto. O parto é um parto. Um treinamento real e duro para o que vem depois à medida que crescemos.
Mas a vida continua, agitada como os tombos que tomamos. O corpo aprende que é feito de carne, e que a carne é fraca. Os ralados, os pontos, os inchaços, os cortes, as assaduras, as alergias, as fraturas, as torções e as queimaduras ensinam.
A dor de garganta, dor de cabeça, dor de barriga, a dor de ouvido, a dor de barriga, a dor de dente, a na nuca. Tudo é dor no corpo, como outras mil dores.
Dor inevitável na consciência
Inevitavelmente, quando a infância acaba e o corpo já está machucado, aprendemos dentro de nós mesmos, como Prometeu talvez tenha feito um dia, que existe a dor na consciência ou consciência pesada. E pesa mesmo quando passamos da linha deixando cacos no caminho.
Ou seja, esta é uma dor inevitável também, mais caprichosa do que as no corpo. Os ralados, cortes e cicatrizações interiores são difíceis de sarar, coisa que nenhum band-aid resolve.
Todos aprendemos que a dor na consciência só melhora com cuidados pacientes e recorrentes. A solidão, por exemplo, exige uma força de vontade sobre-humana – um pedir demais a quem sequer vê necessidade em se encaixar.
“A lonely man is a lonesome thing, a stone, a bone, a stick, a receptacle for Gilbey’s gin, a stooped figure sitting at the edge of a hotel bed, heaving copious sighs like the autumn wind.”
Por isso, se não cuidar da dor na consciência, a coisa se espalha. Ataca o ânimo, tira energia da autoestima e até faz o cabelo cair. A ansiedade, como a que eu tenho, é um gatilho. A isso damos o nome de somatização, quando esta dor é tão presente que sobrecarrega o corpo, puxando-o junto para baixo.
Dor inevitável no coração
O amor preenche vazios. Limpa artérias. Bombeia emoções. Faz sorrir o pai mais acabrunhado. Mas pode picar, como escorpião no mato. A peçonha entra na circulação, iniciando uma intoxicação que endure o coração e confunde os pensamentos.
Nesse processo, a razão entra em colapso sem reagir, e o que foi bom um dia se transforma em quimera. Vocês dois, Artur e Bento, vão sentir dor no coração porque ninguém está imune a ela, que se soma às dores no corpo e na consciência. Cabe a vocês desenvolveram a capacidade de aguentar a picada, com ou sem ajuda.
Cada um reage de um jeito, no seu próprio tempo e intensidade. Porque se houvesse manual a vida seria menos emocionante de contar.
Remédio contra a dor?
Há muitos nas farmácias e consultórios, mas nenhum que realmente funcione como uma boa conversa de si para si. Quem se conhece desenvolve uma espécie de antídoto capaz de amenizar todas as dores.
Prestem atenção: a dor é sinal de que estamos vivos, com os sentidos em ordem. Sem ela, a pele não sente, a consciência se apaga e o coração encolhe.
Sintam suas dores, meninos. É só uma questão de respeitá-las para afastar o medo. Fazendo isso, pouco importa de que tipo elas sejam. Melhor um ralado aqui e ali do que uma vida sem calejar.
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