Eu vi uma senhora na praça se divertindo em espalhar folhas que os garis haviam juntado. Sozinha, ela bagunçava a ordem, forrando o concreto com uma linda pele verde. Quem via lançava olhares condenatórios à espontaneidade da tal faina.
A praça pública, onde cidadãos se encontravam para se expressar nas nascentes metrópoles da Antiguidade, é hoje um espaço vazio de sentimentos e de pessoas, que preferem evitá-la. Onde havia diálogo, olhos nos olhos e debate, resta olvido e repulsa.
“So, while the agora was a special and often hugely enjoyable place, it should be no surprise that it also gave us the word agoraphobia, a fear of public places. For centuries, and certainly today, public squares have been places of protest, of violence and even revolution. The roll call of disturbing public squares is long: Tahrir, Taksim, Tiananmen, Trafalgar. And this is just the entry for ‘T’.”
Jonathan Glancey, em The violent history of public squares
As pessoas evitam as praças de domingo a domingo. Por medo. Por desábito. Por indiferença. Os bancos apodrecem no tempo, sem que lhes passem verniz ou demão de tinta, a grama cresce destemida e as árvores se viram como podem, ameaçadas por pragas que ninguém mais combate.
A senhora que eu vi fez diferente. Ela se realizou na praça, imune à reprovação alheia. É fácil considerá-la louca, quase como um espasmo involuntário da pálpebra, que a gente não controla muito menos entende de onde vem. Se os garis varrem, só espalha quem está mal da cabeça, dirá a lógica fria da nossa época.
Mas é o contrário, penso cá com os meus botões. A senhora entende o que é uma praça, sabe que ali podemos nos desprender de certas regras do convívio social. A praça é de todos, e não faz mal que algumas folhas continuem soltas.
A senhora, com seu gesto inocente, era a única pessoa espontânea do pedaço. Sua atitude desprendida fazia a maioria ali estranhar porque a maioria ali não cultivara no coração o bem-querer de uma praça.
“The ideal person in Western philosophy is not only disembodied but also radically alone.”
Edward Slingerland, em Trying not to try: the art and acience of spontaneity
Às vezes, Artur, a espontaneidade é o frágil amarrilho que nos mantém atados à inconsequência. Um antiácido natural às azias da vida.
Há quem chame isso de “meter o loco”. Não importa. Meter o loco faz bem de vez em quando, em qualquer praça, vazia ou com gente. Deixe seu inconsciente dar uma volta e espalhar as folhas que quiser. …Antes tivesse gravado para te mostrar como a senhora fazia, o jeito dela elegante, delicado e leve.
Relaxe quando meter o loco, sinta-se girando em um carrossel de parque de diversões – perceba o vento no rosto, o frio na barriga do sobe-e-desce do cavalinho ou a força da gravidade contorcendo suas entranhas daqueles carrosséis de assentos enganchados a girar bem no alto.
Sinta-se você mesmo, ponto. Como a senhora me mostrou no dia em que espalhou as folhas verdes em praça pública.