O divórcio dos meus pais obrigou a sua avó Elisabeth a percorrer de volta o caminho que escolhera anos antes quando decidiu sair da casa dos seus bisavós Marília e Lysandro para se casar.
O quarto que nos esperava e que passamos a dividir era amplo, próprio do apartamento de família muito confortável para os padrões da época, privilégio da boa condição profissional do bisavô Lysandro, um servidor público competente e reconhecido por colegas de carreira.
O seu tio avô Flávio vivia no cômodo ao lado, onde eu assistia a filmes que não deveria às escondidas com ele – tios são exímios promotores culturais – e esticava os braços em gavetas de armários e cômodas para alcançar objetos estranhos, como compassos e outros materiais para o desenho de arquitetura, que faziam meus brinquedos perderem o brilho que pudessem ter.
O apartamento supria a minha dose de distração. Bem, em parte, porque faltava a cota das ruas, onde toda criança é mais criança. O meu mundo não se completava sem a praça e os jardins públicos em volta do edifício, espaços em que eu e meus amigos nos entretínhamos supervisionados a contragosto por adultos um tanto mais distraídos fora das quatro paredes, que podiam ser mães zelosas ou avós incorruptíveis, como a minha, que se entregava de corpo e alma à função de vigiar se cairíamos em pecado.
Às vezes, ela fazia a caridade de me deixar sozinho no pátio térreo do prédio, com a condição de que, nestas ocasiões, evitasse ir a outros lugares. Ela não concedia por confiança, mas porque todo adulto necessita às vezes de distância das crianças que cuida, Artur. Sem ressentimentos, por favor.
Eu aproveitava ao máximo, e transgredia também ao máximo, oras. Primeiro, respeitava o perímetro por alguns minutos para estar ali de bom moço caso alguém descesse ao térreo para me ver. Em seguida, confiante beirando a petulância, corria para os fundos do prédio, que davam acesso a um estacionamento a céu aberto e, mais adiante, a uma escada que levava à praça em que uma caixa de areia e duas árvores, cujos galhos entrelaçados estão lá até hoje, faziam a festa da criançada.
Para ali fugia, e sentia meus medos da proibição se dissolverem lentamente, como uma bala de coco derretendo doce na boca. Dava arrependimento quando era descoberto em flagrante e arrancado do paraíso sob reprimendas duras diante de todos os coleguinhas, mas valia a pena arriscar.
O que eu fazia, escapando do térreo do edifício, era pagar para ver – um hábito humano de todas as idades. Veja você, Artur, que aprendeu a dizer NÃO! de muito cedo, gritando-o diversas vezes para contrariar. Imagine então do que somos capazes de adultos. O céu é o limite, dizem.
E é mesmo porque vamos bem lá no alto, muito além da estratosfera do bom senso. Uns disputando com outros quem chega mais longe, sem cerimônias ou medo da queda. Todos queremos o que não deveríamos ou poderíamos, tentados pelo instinto quase animal de infringir leis, ignorar pedidos, quebrar promessas, afrontar por afrontar, mentir sem remordimentos, burlar regras, em suma, pelo prazer de pagar para ver.
E há, em geral, duas possibilidades: ou o pagar para ver é para o bem ou ele causa o mal. A escola, que você já frequenta e recusa às vezes para ficar em casa com os seus brinquedos, é bom exemplo de laboratório em que aprendemos fórmulas eficientes de como dosar.
Nela, desenvolvemos nossos próprios métodos de defesa à autoridade e às normas, testando e testando até acertar. Poderia ser diferente se o modelo atual de ensino estimulasse mais, o que amansaria nosso desejo por pagar para ver. A desobediência, neste sentido, vira a única alternativa para muitos alunos alcançarem outros céus. Há escolas diferentes, claro, em que se estimula a criatividade, o pensamento crítico e o apetite pela inovação como um pagar para ver saudável. Essa é a escola em que queremos te ver – essa é a atitude que tentaremos cultivar em você.
Teaching how and when to break rules and take creative risks isn’t a neat and clean process—it can get a little messy, and errors will be made. But we should be aware of this from the beginning and reward smart risk-taking, even if it leads to an error.
You need to make mistakes in order to learn. If you never know why an answer is wrong, you will never be able to come across a novel situation and make a good decision about how to act. Making errors and struggling through problems is what increases cognitive ability. Spending time pondering a question, weighing choices, thinking about whether or not an answer fits, and why—this is what drives positive change. That’s what learning is. That’s what our education system should be focusing on.
The educational value of creative disobedience, em Scientific American
O segredo por trás do pagar para ver é saber como fazê-lo. Eu paguei para ver muitas vezes em que desrespeitei o pedido da sua avó e da sua bisa de não sair do pátio. Foi bom porque desenvolvi habilidades de relacionamento com os meus amigos, mas foi ruim, por exemplo, quando me machuquei e tive de tomar um banho com sangue escorrendo pelo ralo, cena que lembro com nitidez até hoje porque ficou gravada como lição.
O pagar para ver encanta inclusive os cientistas e pesquisadores, que estão ensinando robôs a decidir qual caminho devem tomar. Entenda uma coisa: a vida é um incansável exercício de escolhas, desde a melhor atitude a tomar na escola ao comportamento correto frente a uma injustiça. Você terá de saber o quão alto vai querer chegar, tanto no bem quanto no mal. Pague para ver, mas faça-o com responsabilidade, consciente dos seus limites e das consequências.
Researchers teaching robots how to best reject orders from humans