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Sombra amiga

Aconteceu mais ou menos assim, Artur. O meu caminho do ponto de ônibus ao trabalho estava bem iluminado por uma “pálida luz” de manhã de inverno, como bem (d)escreve Fernando Pessoa em um de seus poemas. O sol brilhava atrás de mim pouco acima dos terraços do bairro, na medida para aquecer as minhas costas.

Senti aliviado o calor na pele que atravessava o tecido, como quem sabe, mesmo sem saber exatamente, que um dia como aquele, que amanhece disposto, reparte boas intenções sem pedir troco. Apertei o ritmo para chegar, quando percebi de rabo de olho que estava sendo seguido de perto por uma presença silenciosa projetada na calçada e nas faces dos muros um pouco à frente dos meus passos.

Era a minha sombra, Artur. Uma sombra como outra qualquer, muito negra por dentro, mas com os meus contornos. O tronco, as pernas e os braços que ela tinha, embora alongados e fora de proporção, como um boneco de borracha esticado por dedos de criança, davam uma ideia aproximada da minha compleição de menino.

Mas as semelhanças terminavam aí. Se alguém que cruzou comigo na rua prestou atenção apenas à sombra, sem erguer a cabeça para descobrir quem ela imitava, talvez por desvio de atenção ou por puro desapego, perdeu detalhes que dizem mais de mim, como o olhar curioso que regalo aos estranhos ou a minha coluna levemente arqueada de quem não se leva a sério.

Sombras nascem com a gente, crescem grudadas com as mesmas manias e preferências, experimentam as descobertas que os melhores amigos perdem e presenciam nossas frustrações em silêncio, com a singularidade de, por serem densas e soturnas, desenvolverem identidade própria. Como gêmeos de rostos idênticos e corações brigados, as sombras desnudam em parte quem somos – e de brinde desconstroem a persona que adoramos desempenhar em público.

No cantinho mais reservado da nossa consciência, onde preferimos esconder bem escondido o que menos gostamos de nós mesmos, entra pouca ou nenhuma luz. Daí, Artur, o motivo de a sombra ser há muito tempo um símbolo pop do nosso ego mais sombrio.

Livia Falcaru

Os livros que você lerá um dia contam histórias de sombras sedutoras, mais fascinantes do que os personagens que elas emulam. É o caso da turbulenta relação entre o doutor Jekyll, que toma uma poção e encontra “a dualidade absoluta e primordial do homem”, e o senhor Hyde.

O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, é indispensável à sua biblioteca porque ele resiste ao tempo e não tem endereço fixo – de médico e monstro todo mundo tem um pouco –, duas qualidades indispensáveis para um livro se tornar um clássico.

Stevenson fará você ver, Artur, que as sombras são autodidatas e muito observadoras. Aprendem a cuidar da própria vida sem depender de nós, uma habilidade que, em alguns casos, dá a elas a força interior para inverterem os papéis e assumirem o domínio de seus pares.

Quem não lhes dá liberdade e tenta controlá-las, como eu e a sua mãe às vezes quando te fazemos pedidos que você encara como ordens por mais que despejemos justificativas, pode acabar criando seu próprio mostro indomável.

“Unfortunately there can be no doubt that man is, on the whole, less good than he imagines himself or wants to be. Everyone carries a shadow, and the less it is embodied in the individual’s conscious life, the blacker and denser it is. If an inferiority is conscious, one always has a chance to correct it. Furthermore, it is constantly in contact with other interests, so that it is continually subjected to modifications. But if it is repressed and isolated from consciousness, it never gets corrected.”

C. G. Jung, em Psychology and religion: West and East (The collected works of C. G. Jung, volume 11)

Coração das trevas, de Joseph Conrad, também trata de sombras, como o nome sugere e a leitura afirma. Nele, acompanhamos o protagonista Marlowe em sua viagem rumo às entranhas da selva africana para resgatar Kurtz, um comprador de marfim que se deixa dominar por sua sombra e que, cada vez mais apartado da realidade, adota métodos condenáveis.

“A primeira [interpretação], cujo conteúdo está sobretudo explicitado na metade inicial do texto, concerne à desumanização e à violência engendradas pelo colonialismo europeu na África. Mais baseada na outra metade da novela, a segunda leitura aponta para a inquietação existencial e o desregramento de indivíduos confrontados com a ruptura dos laços sociais.”

Luiz Felipe Alencastro, no posfácio da edição de Coração das Trevas que te indico no parágrafo anterior, Artur.

O mergulho nas profundezas da selva – ou na consciência de Kurtz – inspirou Apocalypse now, obra-prima de Francis Ford Coppola, em que o capitão Willard (Marlowe) é designado, em meio aos horrores da guerra do Vietnã, para subir o rio e matar o coronel Kurtz, convencido de ser um semideus adorado por seus súditos armados. Willard vê de muito perto a sombra negra do militar, que também serve de alegoria para os devaneios da humanidade.

A sua sombra já te acompanha, Artur, embora a você a tenha apenas por uma imitadora divertida para os momentos de pouca graça. Ela cresce com você e aprende a replicar quando lhe convém, um mania que vai se tornar mais e mais recorrente. Você terá de aprender a dialogar, a entrar em termos com ela. Isso tentamos fazer todos para que as nossas sombras tenham voz, mas não vida própria.

Sombras dependem de luz, que só existe porque há escuridão. Luz e sombra. Uma dupla que você leva consigo, que os seus olhos se habituam a admirar e que a sua consciência deverá saber apaziguar para que as duas consigam partilhar bons momentos contigo.

lelecoms

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