Meus pais, Artur, separaram-se quando eu era pequeno e meu universo se expandiu. Passei a orbitar a estrela que me ensinaram a chamar de família transitando entre dois novos mundos, o do apartamento dos seus bisavós maternos — para onde fomos eu e a sua avó Elisabeth — e o do seu avô José, meu lar temporário de fins de semana intercalados.
Esse novo arranjo, que nos obrigou a reescrever nossas equações das coisas grandes e das tão pequenas, teve um impacto adicional em mim.
Como quem espia reverente o firmamento atraído pelo brilho das constelações que vê — e se utiliza do gesto de erguer a cabeça para o céu como um gatilho para a experiência maior de refletir sobre as questões de dentro —, comecei a observar mais as relações, a me fazer perguntas e a entender que já era hora de conjugar verbos em primeira pessoa.
Estava, enfim, tomando consciência de ter um eu com um papel e um lugar no espaço. Isso de realizar que somos, estamos e convivemos é, Artur, um dos maiores desencantos. Adoraria me lembrar da primeira vez em que, ao parar diante de um espelho, vislumbrei uma figura que até então me era ausente, mas que em seguida reconheci ser eu consciente de mim mesmo. Deve ter sido toda uma experiência.
E pelo fato de ninguém ser sozinho, mas de estar rodeado de outros que também o são, a descoberta — e a responsabilidade — de ter um eu jamais deve se dissociar da sensibilidade de perceber (ao menos) o outro em suas diferenças.
Estás neste mundo desde o exato instante em que um médico, com mãos embaladas em luvas assépticas e guiado pela vontade explícita de chegar o quanto antes em casa, removeu seu corpo do útero da mamãe. Uma vez fora, não há volta. Você, direta e indiretamente, começa a interagir, para o bem e para o mal. E esse é um aprendizado para a vida, Artur.
— Sempre que tiver vontade de criticar alguém — ele disse —, lembre-se de que ninguém teve as oportunidades que você teve.
O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald
Enxergar o outro é, antes de tudo, sensibilizar-se (a tal da empatia). Quem negligencia isso, porque já não vê necessidade ou perdeu o trejeito com o tempo, para de se envolver. A realidade deixa de afetar, o que é um alívio se se busca o caminho mais curto e cômodo.
Eu busco o oposto. Choro, sim, ao ver esta foto, por exemplo, pelo que ela mostra e culmina — que nem todos têm as mesmas oportunidades, que crianças também são vítimas, que Alan Kurdi (o menino da imagem tem nome e história) morreu em vão, que se sensibilizar espeta o nervo seu mais sensível.
O exercício de ser alguém é se ver em quem não se é.
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