Nossos corpos balançavam com o molejo do ônibus, como se ele fosse de brinquedo e uma criança o levasse por montanhas imaginárias de curvas sinuosas, do jeito que você faz, Artur, com o seu coletivo de plástico vermelho-vivo.
Nesse ônibus em que eu vagava entre o real e o fantasioso, percebi uma pessoa que levava entre as pernas, esforçando-se para mantê-lo em pé, um guarda-sol verde e amarelo cuja ponta quase tocava o teto. A quais pessoas esse guarda-sol ofereceria sombra? Elas agradeceriam pela guarida?
Nossos corpos continuavam a chacoalhar, um para-lá-e-para-cá que fez o guarda-sol parecer um pêndulo, ocupação temporária que ele dominou com elegância, cativando ainda mais a minha atenção além de suas cores, tamanho e presença tão deslocada dentro de um espaço em que as pessoas já se sentem encolhidas, imagine ele, fechado sem quase caber ali apoiado contra a janela.
O que fazia eu nesse ônibus a observar o guarda-sol com tamanha impertinência? Nada, Artur, confesso. E justo por isso tive o reflexo necessário para agarrar esse escapismo fugidio da rotina – um encantamento como tantos outros que deixamos passar porque não os vemos no momento exato.
Eu bem poderia só pensar no trabalho, no trânsito, no quanto os ônibus da nossa cidade são ruidosos e estão sempre fatigados de quase parar a viagem nas subidas por falta de fôlego, mas por algum motivo decidi olhar para o lado com um pouquinho mais de abstração, encontrando esse inusitado visitante de pau e lona no coletivo mambembe de todos os dias.
A vida tem dessas surpresas, Artur, muito fugazes e esguias, mas que guardamos na memória se temos a sorte de repará-las, como acontece quando flagramos estrelas cadentes correndo velozes no ar da noite.
Tente encontrá-las no firmamento ou guarda-sóis fora de lugar. Recolha-se de vez em quando da mesmice para perceber no céu e na terra essas migalhas de magia que como trilhas de pistas deixadas pela vida podem te levar a limites desconhecidos da sua percepção.
“O sótão era um bom lugar para esses papéis, aquela cumeeira aceleirada da casa — grande como um palheiro — com suas vigas e remos e telhas e velas esgarçadas e móveis quebrados e chaminés estropiadas e marimbondos e vespas e candeeiros obsoletos espalhados pelo chão como ruínas de uma civilização extinta e com uma atmosfera extraordinariamente perfumada, como se algum Wapshot do século XVIII, bebendo vinho madeira, comendo nozes numa praia ensolarada e pensando na mudança da estação, houvesse tentado capturar o calor e a luminosidade num frasco ou num cesto e deixado seu tesouro no sótão, pois ali era o lugar do aroma do verão sem sua vitalidade; ali parecia haver luzes e sons de um verão preservado.”
A crônica dos Wapshot, de John Cheever
Quando me dei conta, entre um sacolejo e outro do ônibus, estava imaginando que amigos compartilhariam uma longa comida e uma deliciosa conversa sob aquele guarda-sol verde e amarelo aquecido pela tarde luminosa de um sábado qualquer.
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